É possível usucapião de terreno de marinha?

É possível usucapião de terreno de marinha? É  possível reconhecer  a  usucapião  do  domínio útil de terreno de marinha  sobre o qual tinha sido,  anteriormente,  instituída enfiteuse,  pois,  nesta circunstância, existe apenas a substituição do  enfiteuta  pelo  usucapiente,  não trazendo qualquer prejuízo ao Estado.

O que é terreno de marinha

Para abordar a questão, ou seja, a possibilidade de usucapião de terreno de marinha, é necessário compreender no que consiste um terreno de marinha.

Pelo o que prevê o art. 20, inciso VII, da Constituição, os terrenos de marinha e seus acrescidos são de propriedade exclusiva da União.

Conforme o Decreto-Lei nº 9.760/46, são terrenos de marinha as faixas de terra com profundidade de 33 metros contados do início do mar para dentro do continente.

Essas parcelas do solo devem constar cadastradas na Secretaria do Patrimônio da União (SPU), mediante Registro Imobiliário Patrimonial (RIP).

A Lei não obriga a União registrar os terrenos de marinha em um Cartório de Registro de Imóveis (CRI). Basta o cadastro na SPU para que a área passe a integrar o patrimônio da União.

Ao longo do tempo, isso tem gerado muito surpresa e insatisfação a particulares, já que não é estranho o conflito entre os registros.

Não é incomum um imóvel constar registrado no CRI como de propriedade exclusiva de um particular, enquanto, parcela da área, consta cadastrada na SPU.

No entanto, para que o imóvel integre o patrimônio da União, deve haver a prévia identificação da respectiva faixa de marinha.

Essa identificação se dá através de um processo administrativo.

Processo administrativo para identificação de terrenos de marinha

O processo administrativo para identificação de terreno de marinha envolve, sobretudo, a realização de medições na região onde o imóvel encontra-se situado.

Nessas medições há a aplicação de parâmetros e técnicas sofisticadas os quais, independentemente da sua utilização frequente, colocam em dúvida a sua certeza.

Um ponto de extrema importância é que eventuais interessados devem ser chamados a participar do processo administrativo.

É o caso de particulares que são proprietários de imóvel onde a União alega existir uma eventual faixa de marinha.

A participação dos particulares é obrigatória!

Consequências do não-chamamento de particulares para a medição de terreno de marinha

Caso os interessados não sejam chamados a participar do processo administrativo para identificação de terrenos de marinha, poderá ser declarada a sua nulidade.

Como consequência disso, haverá:

– a exclusão do imóvel do cadastro da Secretaria do Patrimônio da União (SPU);

– a anulação do Registro Imobiliário Patrimonial (RIP);

– não haverá mais a obrigação de recolhimento de foro anual;

– no caso de transferência do imóvel, será inexigível o pagamento de laudêmio;

– por fim, será inquestionável a propriedade exclusiva do imóvel pelo particular.

Diferença entre ocupação e aforamento

Para entender a possibilidade de usucapião de terreno de marinha, é importante saber a diferença entre dois institutos jurídicos:

– a ocupação de terreno de marinha;

– e a enfiteuse ou aforamento.

Vamos lá!

O que é ocupação de terreno de marinha

Embora sejam de propriedade da União, os terrenos de marinha e seus acrescidos podem ser objeto de ocupação por particulares.

Em linhas gerais, na ocupação, a União admite que um particular use o imóvel.

No entanto, na ocupação, o particular não exerce posse jurídica – requisito imprescindível para a usucapião.

Na ocupação, o ocupante é mero detentor do bem público, não possuindo qualquer direito real.

Uma outra característica é que a ocupação, via de regra, é precária, ou seja, pode a qualquer momento ser revogada

Ainda que a União tolere por longo tempo a ocupação do imóvel, pode, a qualquer momento, e sem qualquer justificativa, exigir a sua desocupação.

O que é enfeteuse ou aforamento de terreno de marinha

Por sua vez, a enfiteuse, também conhecida como aforamento, consiste na possibilidade da União transferir a um particular parte do direito de propriedade sobre o bem.

Na enfiteuse, a União transfere ao particular o domínio útil sobre o imóvel, gerando, assim, um direito real.

Para efeito de usucapião, a distinção ente ocupação e enfiteuse é de suma importância.

Se na ocupação, o particular não tem qualquer direito real sobre o imóvel, a partir do momento em que ocorre a enfiteuse, ou aforamento, o particular passa a exercer a posse jurídica sobre um direito real.

Traçada a distinção entre ocupação e enfiteuse e, sobretudo, sabendo que na enfiteuse o enfiteute adquire um direito real, exercendo a posse em seu próprio nome, vamos mergulhar na questão da usucapião de terreno de marinha.

Vejamos…

Proibição de usucapião de imóveis públicos

A Constituição é enfática ao proibir a aquisição de imóvel bem público através da usucapião:

Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Constituição Federal da República, § 3º, art. 183

Assim, fica claro que caso o particular seja mero ocupante de um terreno de marinha, exercendo tão somente a detenção do bem público, ou seja, não exercendo a posse em seu nome, mas em nome da União, não se cogita da possibilidade jurídica da aquisição da propriedade através da usucapião.

A ocupação de terreno de marinha não gera direito real

Como vimos acima, na ocupação, o ocupante não possui qualquer direito real sobre o imóvel, tratando-se de mero detentor.

Outrossim, tendo em vista a natureza precária da ocupação, a União pode, a qualquer momento, e sem qualquer justificativa, exigir a desocupação do imóvel.

A coisa muda de figura, no entanto, no caso da enfiteuse ou aforamento.

A enfiteuse ou aforamento de terreno de marinha gera direito real

A grosso modo, a usucapião é um modo de adquirir a propriedade sobre uma coisa, sendo indispensável, em qualquer das suas modalidades, o exercício da posse jurídica sobre o bem ao longo de determinado período de tempo.

Acontece que, a usucapião não se presta tão somente a aquisição da totalidade do direito de propriedade, mas pode incidir apenas sobre algum dos seus poderes.

Acerca dos poderes, conforme o Código Civil, o direito de propriedade compreende um conjunto de direitos, ou seja:

– usar a coisa;

– gozar da coisa;

– dispor da coisa;

– reaver a coisa de quem injustamente a possua ou detenha.

Dessa forma, a usucapião pode incidir sobre qualquer um desses poderes e, por consequência, sobre todos os direitos reais como, por exemplo, o usufruto, o uso, a habitação, as servidões prediais etc.

A enfiteuse gera um direito real, já que, através dela, a União transfere o domínio útil do imóvel a um particular.

Por resultado, o domínio útil sobre o imóvel pode, sim, ser objeto de usucapião, ainda que a área a usucapir se trate de um terreno de marinha

É possível usucapião de terreno de marinha?

Veja que a usucapião do domínio útil de um terreno de marinha não conflita em nenhum momento com a proibição de usucapião de bens públicos prevista na Constituição.

Como visto acima, diferentemente da ocupação, na enfiteuse a União, mediante contrato, transfere ao particular o domínio útil sobre o imóvel.

Dessa forma, na usucapião do domínio útil de um terreno de marinha, não se está adquirindo a propriedade de um bem da União.

Está se adquirindo o domínio útil do terreno de marinha que se encontra nas mãos de um particular o qual, por alguma razão, deixou de exercer a posse jurídica para um outro particular que, atendendo os requisitos para a usucapião, adquiriu-lhe a propriedade.

Nesse caso, é possível se falar de uma ação de usucapião de faixa de marinha; não contra a União, mas contra o enfiteuta (o particular) que, por razões adversas, deixa de exercer a posse sobre o domínio útil.

Seguindo essa inteligência, inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça segue essa inteligência: “É  possível reconhecer  a  usucapião  do  domínio útil de bem público   sobre   o   qual  tinha  sido,  anteriormente,  instituída enfiteuse,  pois,  nesta circunstância, existe apenas a substituição do  enfiteuta  pelo  usucapiente,  não trazendo qualquer prejuízo ao Estado.”

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Base legal

Decreto-Lei nº 9.760/46

Jurisprudência

AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO – DECISÃO MONOCRÁTICA NEGANDO PROVIMENTO AO RECLAMO – INSURGÊNCIA RECURSAL DA DEMANDADA.

  1. A revisão das conclusões da Corte de origem acerca da presença dos requisitos legais necessários para a aquisição da propriedade pela usucapião extraordinária demandaria a reapreciação do contexto fático e probatório dos autos, prática vedada pela Súmula 7 do STJ.
    Precedentes.
    1.1. É possível reconhecer a usucapião do domínio útil de bem público sobre o qual tinha sido, anteriormente, instituída enfiteuse, pois, nesta circunstância, existe apenas a substituição do enfiteuta pelo usucapiente, não trazendo qualquer prejuízo ao Estado. Precedentes.
  2. Esta Corte de Justiça tem entendimento no sentido de que a incidência da Súmula 7 do STJ impede o exame de dissídio jurisprudencial, na medida em que falta identidade entre os paradigmas apresentados e os fundamentos do acórdão, tendo em vista a situação fática do caso concreto, com base na qual deu solução a causa a Corte de origem.
  3. Agravo interno desprovido.
    (AgInt no REsp 1642495/RO, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 23/05/2017, DJe 01/06/2017)
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